terça-feira, 22 de outubro de 2013

Aniversário de um Mestre

PATTAPIO SILVA
(Iataocara, RJ, 22 de Outubro de 1880 - Florianópolis, SC, 24 de abril de 1907)

Hoje é a data de nascimento de um dos maiores nomes da flauta brasileira. Pattapio Silva, um flautista que com apenas 26 anos de vida alcançou objetivos louváveis e admaráveis até os dias de hoje.
Abaixo segue um excelente texto de Maurício Oliveira (Jornalista e mestre em história pela UFSC):

Há cem anos, no dia 24 de abril de 1907, morria o flautista e compositor Pattapio Silva, um dos principais nomes da música brasileira no início do século passado. Mulato, de origem humilde, Pattapio alcançou em apenas 26 anos de vida a condição de concertista famoso, freqüentador dos palcos mais elegantes do país. Após de destacar como aluno do curso de flauta do Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, tornou-se um dos pioneiros da indústria fonográfica nacional ao realizar as primeiras gravações de um instrumentista solo, em 1902. Sua morte em Florianópolis, provocada por uma repentina e misteriosa doença, comoveu o país. A síntese desse sentimento está em um trecho do livro"Clara dos Anjos", de Lima Barreto:
De uns tempos a esta parte, porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento – delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Pattapio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu. Embora não seja um nome conhecido do grande público, Pattapio tem admiradores fiéis em seu métier. “Ele é nosso espelho, nossa força maior. Se vivesse hoje, certamente estaria no nível dos grandes flautistas eruditos, como Rampal e Moyse”, diz o decano Altamiro Carrilho. Outro fã do flautista é o produtor musical Ezequiel Neves, célebre por ter lançado o grupo de rock Barão Vermelho. “Fiquei fascinado logo que o ouvi pela primeira vez, em 1970, quando o cineasta Rogério Sganzerla levou um disco do Pattapio ao me visitar em Londres”, lembra Neves, que em 1999 votou no flautista e em seu pupilo Cazuza como “músicos do século” em uma enquete promovida por uma revista semanal.
Pattapio nasceu no dia 22 de outubro de 1880 na freguesia de São José de Leonissa, atual município de Itaocara (RJ).

Era o primogênito da negra Amélia Amália de Medina Silva, filha de escravos alforriados, e do português Bruno José da Silva, que exercia a atividade de barbeiro. Quando tinha seis anos, os pais se separaram e ele foi morar com Bruno e os dois irmãos mais novos em Cataguases (MG), enquanto a mãe permanecia em Leonissa, onde passou a viver com o comendador português Antonio de Souza Menezes, com quem viria a ter mais sete filhos. Interessado por flauta desde a infância, Pattapio se dedicou com afinco ao instrumento para escapar do destino traçado pelo pai, que desejava vê-lo a seu lado na barbearia. Aos 15 anos, contra a vontade de Bruno, ingressou em uma das bandas de música da cidade, a Aurora Cataguasense. Nos três anos seguintes, passou por diversas bandas do interior de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. O jovem flautista se tornava especialmente atraente para essas agremiações porque, além de instrumentista, também compunha dobrados, marchas, polcas e valsas.

Em 1900, aos 20 anos, Pattapio enfrentou o desafio de mudar-se para o Rio de Janeiro. Ganhou a vida nos primeiros tempos como tipógrafo na Imprensa Nacional e da Casa da Moeda. Assim que se enturmou com os artistas da cidade, passou a atuar em trupes de teatro, “bico” comum para músicos à época. Superadas as turbulências iniciais, apresentou-se como candidato ao curso de flauta do Instituto Nacional de Música – um ambiente elitista, freqüentado predominantemente por filhos de famílias abastadas. Ao demonstrar suas habilidades com o instrumento, foi acolhido pelo professor da cadeira, Augusto Duque Estrada Méier, que se tornou tutor e conselheiro do rapaz.

Pattapio iniciou os estudos em abril de 1901 e menos de um ano depois, em fevereiro de 1902, participava de seu primeiro recital, ao lado de outros alunos e ex-alunos do curso de flauta. Além da insegurança natural de estreante, Pattapio teve que superar o obstáculo da própria aparência. Como ressalta o pesquisador Vasco Mariz, “o público musical das sociedades de concertos olhava com certo desprezo tudo o que pudesse proceder do povo.” E a cor da pele demonstrava inequivocamente que Pattapio vinha do povo. Por essa razão, mais do que ter um desempenho digno de um aluno do prestigiado Instituto Nacional de Música, ele precisava se destacar em relação aos colegas.

Ainda naquele ano de 1902, Pattapio se tornaria um dos pioneiros da indústria fonográfica brasileira. O tcheco Fred Figner (1866-1947), fundador da Casa Edison, primeira gravadora brasileira, acabara de conquistar um terço dos direitos da patente do disco duplo no país, em sociedade com a International Zonophone Company e o inventor da tecnologia, o suíço Adhemar Napoleon Petit. Em decorrência do acordo, a empresa alemã enviaria um técnico ao Rio de Janeiro para realizar as primeiras gravações no Brasil. Recomendou a Figner que providenciasse bom material musical, “tanto de canto como de instrumentos”. A permanência do técnico seria de três semanas, período em que poderia fazer até 175 gravações de sete polegadas e 75 gravações de 10 polegadas. Assim, Figner teria que encontrar, com urgência, músicos capazes de executar as gravações com sucesso.

A escolha mais óbvia foi a Banda do Corpo de Bombeiros, não apenas pela reconhecida qualidade de seus componentes, mas também por uma imposição técnica. Naquele sistema de gravação rudimentar, um cone de metal recolhia o som ambiente e a vibração resultante acionava a agulha que fazia os sulcos nos cilindros de cera, antecessores dos discos de 78 rotações por minuto. Quanto mais altos os sons captados, mais bem sucedida seria a gravação. Assim, nada mais apropriado que uma banda militar habituada a tocar ao ar livre. Tarefa bem mais difícil seria encontrar um instrumentista que conseguisse, sozinho, superar esse obstáculo técnico – e que, ao mesmo tempo, concordasse com o pagamento irrisório que Figner oferecia. Informando-se sobre as alternativas disponíveis na cidade, o empresário chegou ao nome de um jovem flautista que estava se destacando como aluno do Instituto Nacional de Música. Foi assim que, aos 22 anos, Pattapio tornou-se o primeiro instrumentista solo a realizar gravações fonográficas para serem comercializadas em escala industrial no Brasil. A seqüência da numeração manuscrita na cera de gravação leva à conclusão de que as gravações de Pattapio foram feitas em um curto espaço de tempo, logo nos primeiros dias de presença do técnico enviado pela Zonophone ao Brasil, no início de 1902. O flautista parece ter simplesmente atendido ao pedido de executar o repertório mais variado possível, pois na seqüência de 13 gravações misturou composições próprias – como a mazurca Margarida, o romance-fantasia Sonho, a polca Zinha, a valsa Amor Perdido e a romanza Serata d’Amore – com obras de outros autores, brasileiros e estrangeiros.

O resultado dessas gravações não é perfeito. Há, no entanto, algumas justificativas para tal fato, como apontou o pesquisador Humberto Franceschi. Além da impossibilidade de refazer trechos com falhas e da obrigação de tocar alto o suficiente para efetivar o registro na matriz de cera, o que aumentava os riscos de erro, a tensão da bateria elétrica que controlava a rotação da cera oscilava constantemente, resultando em diferenças entre o que fora gravado e o que seria reproduzido. É importante lembrar, também, que o estúdio improvisado – um “puxado” nos fundos da loja de Figner, com área inferior a 50 metros quadrados – não tinha qualquer preparação para modular o som. Dificuldades técnicas à parte, os discos tiveram excelente repercussão entre seus contemporâneos, o que leva à conclusão de que o público da época compreendia que o resultado não poderia ser exatamente igual ao de uma apresentação ao vivo. Graças às gravações, o nome de Pattapio tornou-se conhecido de norte a sul do país – como indica um trecho de "Solo de clarineta", livro de memórias do escritor gaúcho Érico Veríssimo:

De quando em vez meu pai aproximava-se do gramofone, dava-lhe corda, punha-lhe no prato um disco cuja melodia, fanhosa e metálica, pouco depois enchia o ambiente. O famoso flautista brasileiro Pattapio Silva interpretava, numa chapa da Casa Edison, do Rio de Janeiro, a Serenata de Schubert, música que provocava em mim uma dessas inexplicáveis tristezas de apertar o peito. De acordo com o pesquisador paulista Artur Carvalho, que produziu uma espécie de “parada de sucessos” dos primeiros tempos da indústria fonográfica brasileira a partir de uma metodologia utilizada pela revista norte-americana Billboard, a gravação feita por Pattapio de sua composição Amor perdido foi a mais comercializada do país em 1904. Nos três anos seguintes – até sua morte, em 1907 –, as gravações do flautista apareceram outras 20 vezes na lista das dez mais vendidas de cada ano.

Ao concluir o curso de flauta, em dezembro de 1903, Pattapio ganhou ainda mais fama ao se tornar protagonista de um episódio de grande repercussão política, “o caso da flauta encantada”. Tudo começou quando os professores do Instituto Nacional de Música decidiram agraciá-lo com um prêmio especial em reconhecimento ao bom desempenho como aluno: uma flauta Louis Lot de prata que havia sido doada por uma dama da alta sociedade carioca, Francisca Saldanha Marinho Samico, esposa de um conhecido médico da cidade, Henrique Samico. O instrumento pertencera ao filho do casal, José, que morrera muito jovem. Ao doar a flauta ao Instituto, Francisca pedira apenas que o instrumento fosse entregue a um aluno que o fizesse por merecer. No final de fevereiro de 1904, Pattapio foi convocado para a solenidade de entrega do prêmio. No momento em que foi aberto o cofre em que deveria estar depositada a flauta de prata, contudo, surpresa: o instrumento havia desaparecido. Foi um bafafá. O Correio da Manhã, um dos principais jornais do Rio de Janeiro à época, aproveitou para intensificar sua campanha contra o governo Rodrigues Alves e especialmente contra o ministro da Justiça e Negócios Interiores, o baiano José Joaquim Seabra, conhecido como J. J. Seabra (1855-1942), já que o Instituto Nacional de Música estava sob a responsabilidade da pasta comandada por ele. A antipatia ao ministro decorria em grande parte da polêmica campanha da vacinação obrigatória, já que era a J. J. Seabra que se reportava o médico Oswaldo Cruz. Um irônico soneto publicado pelo jornal dizia, em seu último verso, que “a flauta do Pattapio certamente era uma flauta feita para fugas”, trocadilho que ao mesmo tempo fazia referência a um recurso musical e ao sumiço do instrumento. Veículos satíricos, como O Malho, também não deixaram passar a oportunidade de fazer piada: Peçamos aos públicos poderes que não mais façam o que fizeram desta vez, ordenando que sobre o misérrimo caso a diretoria do Instituto abrisse um inquérito severo... Sobre coisas dessa natureza não se abre coisa nenhuma – nem mesmo um inquérito. Fecha-se desde logo a porta aos que estavam lá dentro, tanto aos que roubaram quanto aos que deixaram roubar de dentro da ‘burra’ a tão decantada flauta.

O inquérito policial para apurar o sumiço não deu resultado. Três meses depois, quando o assunto já estava quase esquecido pela imprensa, os jornais trouxeram a surpreendente notícia do reaparecimento da flauta, depositada na calada da noite em um armário do Instituto Nacional de Música. Pressionado pela repercussão do caso, o diretor do Instituto, Henrique Oswald, que já estava desgastado no cargo, tratou de sair de cena. Providenciou uma viagem de aperfeiçoamento musical e pediu afastamento do cargo, assumido interinamente pelo professor da cadeira de composição, Francisco Braga. O afastamento definitivo de Oswald só se daria mais de um ano depois, quando pediu demissão, alegando “dificuldades de adaptação”. Músico respeitado, ele voltou a dar aulas no curso de piano, função que ocupou até morrer, em 1931, aos 79 anos.

Aconselhado pelo mestre Duque Estrada Méier, Pattapio decidiu, ao final do curso, afastar-se das bandas para se tornar concertista solo. Tratava-se de uma aposta de risco. Era preciso torcer para que o público presente aos espetáculos fosse suficiente para cobrir os custos de viagem. Foi em meio a uma das suas primeiras excursões como concertista, pelo estado de São Paulo, que Pattapio recebeu a notícia da morte de Méier, ocorrida em 24 de abril de 1905. O professor fora vitimado, aos 60 anos, por um derrame. Na condição de aluno reconhecidamente mais destacado a passar pelo curso de flauta, Pattapio considerava-se o nome ideal para suceder o mestre. Três semanas após a morte de Méier, contudo, a nomeação saiu para Pedro de Assis, um ex-aluno dez anos mais velho que Pattapio. Pedro de Assis já fazia as vezes de professor substituto e podia ser considerado o sucessor natural, mas ainda assim foi um golpe duro para Pattapio, como relatou seu irmão Cícero Menezes em uma pequena biografia publicada em 1953.

A decepção contribuiu para que o flautista decidisse se mudar para São Paulo, em fevereiro de 1906. Queria juntar dinheiro para viajar à Europa, onde continuaria os estudos e visitaria as mais célebres fábricas de flauta. Em outubro daquele mesmo ano, já ambientado em São Paulo, deu um passo ousado: assumiu a organização de um concerto composto apenas de primeiras audições – composições nunca antes apresentadas na cidade. O espetáculo, no Salão do Conservatório Dramático e Musical, reuniu solistas de outros instrumentos além da flauta: piano, harpa, oboé e clarinete. O teatro teve boa presença de público e a iniciativa de Pattapio foi elogiada pela crítica paulistana.

Em março de 1907, o flautista iniciou excursão pelo Sul do país. Realizou três concertos em Curitiba – um deles extra, dedicado exclusivamente à colônia alemã – e seguiu para Florianópolis. Chegou seis dias antes da única apresentação prevista para a cidade, marcada para 18 de abril, quinta-feira. Os ensaios no Hotel do Comércio, onde estava hospedado, tornaram-se concorridas prévias do que seria visto na tão aguardada noite de gala – a pequena capital catarinense não estava habituada a receber artistas de renome nacional. No dia do concerto, entretanto, Pattapio adoeceu. Uma febre repentina o deixou de cama e a apresentação foi adiada. Mesmo sendo atendido no quarto do hotel pelos melhores médicos da cidade, o quadro agravou-se gradualmente e ele não superou a sétima noite de agonia. Morreu às duas horas da manhã do dia 24 de abril de 1907. Confusos diante dos sintomas, os médicos anotaram no atestado de óbito “gripe adinâmica”, um diagnóstico genérico.
A população de Florianópolis compareceu em peso ao velório no saguão do hotel, e ao enterro, à tarde. No dia seguinte, a morte de Pattapio repercutiu na imprensa de todo o país. A estranha doença que o vitimara passou a ser motivo de especulações. Ainda no velório, correu o boato de que o flautista havia sido envenenado no bocal da própria flauta por um figurão da política local que se interessara pela bela mulher que o acompanhava, a atriz e cantora italiana Laly Mafaldi. O suposto envenenamento jamais foi comprovado. Oito anos depois da morte, em 1915, os despojos de Pattapio foram transferidos para o Cemitério São Francisco Xavier, no Rio de Janeiro, a pedido de pai. Sua flauta, com fama de amaldiçoada, teve destino incerto.

... CONTINUA...

Confira o texto na integra clicando AQUI.

Grande abraço,
Del Lima Jr.
O flautista Cósmicotropolitano.

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